Veja em ti minha fragilidade
- Flavia Quintanilha
- 28 de abr.
- 3 min de leitura
É possível definirmos a natureza da confiança? Para a filosofia a confiança é a base da moralidade, pois ela entrega o elemento primordial da vida em comum. Ela é o fundamento da cooperação e da comunalidade. Pensando dessa maneira, me parece que a confiança é algo dado por vontade própria. É algo que escolhemos oferecer. Mas se é algo que escolhemos oferecer, não pode ser considerado um sentimento. E mesmo não sendo um sentimento, necessita de outra pessoa, ou pessoas, ou grupo. Em outras palavras, a confiança é algo que entregamos à alguém com consciência da entrega. Ou seja, eu quero mesmo confiar em você. Mas será que é tão simples assim?
Vamos levantar a hipótese de uma vida que desde o início recebeu o contrário da confiança. Uma pessoa que desde a infância ouviu que ela não é confiável, que ela não consegue realizar as coisas, que ela não termina o que começa. Acrescido a isso, todas as vezes que lhe prometeram algo, não cumpriram. Todas as vezes em que confiou em alguém foi, de alguma maneira, traída. Todas as vezes que violaram seu corpo. Todas as vezes que minaram sua autoestima. E que, diante de tudo o que viveu essa pessoa não é capaz de confiar. Que em tudo o que vive há uma sombra que a acompanha, algo sorrateiro que a espreita e que se confirma não ser confiável.
Considerando a hipótese que o grupo só pode viver nas bases da confiança e que o indivíduo é tristemente não confiável, como equalizar essas duas partes?
Para responder tal questão é necessário pensar como a confiança se configura como a base da vida em comum. Como é possível algo tão insustentável ser o cerne da moralidade? Considerando que a moralidade, para a filosofia, é o conjunto de regras e princípios que orientam as ações humanas, ou seja, orientam o comportamento individual e coletivo, bem como define o que é considerado ético ou não. Dentro desse espectro, podemos pensar em três grandes áreas: a metaética, a ética normativa e a ética aplicada. Nesse sentido, a moralidade ao mesmo tempo que orienta as ações coletivas e individuais e, em contrapartida, é influenciada e determinada pelos fatores sociais, culturais, religiosos, individuais. Complexo, não é mesmo? Como algo tão frágil e subjetivo pode influenciar todas as ações humanas, determinando para onde corre a ética e a própria moral? E como alguém tão afetada por situações negativas pode ter um posicionamento de confiança para com os outros, se suas experiências provam que não é seguro confiar?
Aparentemente, é possível ter a confiança como a base da moralidade e ela ser a única forma possível de vida em comunidade. Entretanto, a vida em comunidade anda cada vez mais distante. É fácil pensar a confiança quando o convívio é com pares. É impossível confiar, quando olhamos todos os que não conhecemos.
O que me parece é que a confiança, como escolha de convívio, é a única maneira de ter uma vida minimamente tranquila. É impossível viver em posição de alerta o tempo todo. É por essa razão que alguns trabalhos são insalubres. É pela suposta tranquilidade que optamos abandonar a desconfiança. É pela mesma possibilidade que elegemos aqueles mais próximos, redes de apoio, comunidade acolhedora. É na ânsia de poder viver bem que fiamos a fragilidade como o confiável. É por saber o quanto somos vulneráveis, que aceitamos depositar no outro a confiança que temos em nós mesmos. O que parece paradoxal é o momento libertador de compreensão. É quando expomos e aceitamos nossa própria vulnerabilidade é que confiamos. Ela, a confiança, esse elemento que revela a falibilidade humana é a base mais sólida de todas as questões morais. É por sabermos que vamos errar, que somos pequenos e mesquinhos, que é exigido de nós mesmos esse ato de abrir-se ao outro para que se acomodem todos os nossos temores.
É quando vemos no outro a nossa própria fragilidade, é quando vemos em nós mesmos a própria fragilidade do outro, é nesse momento que somos coletivo em um só indivíduo.
E no espelho
colada com cola
mais bela
do que dantes
como o prato Zen
que tem as fracturas
sublinhadas
com ouro
obra da fortuna
má e boa
obra da falta de afecto
e do afecto
Narciso e anti-Narciso
viver para crer
Adília Lopes
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
Nesses tempos de relações líquidas, o seu texto é fundamental. Amei!