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O APRENDIZADO DA BORBOLETA NO PROCESSO METAMÓRFICO DO ESPÓLIO

Por Isa Corgosinho


Em seu terceiro livro, Flávia Ferrari nos agracia com novas imagens da metáfora CASA e seus espaços extensivos. No entanto, a CASA aqui se apresenta na ambivalência da construção e desconstrução. Esse conjunto de bens, que formam o patrimônio do morto a ser partilhado com os herdeiros, é a herança do lirismo existencial da poeta.

A desdobrável metáfora do espólio retorna na casa material e subjetiva. Os materiais concretos dessas edificações sofrem o mesmo processo de decomposição e ruína dos materiais orgânicos, como o corpo. O leitor é pensado como um articulador de sentidos, de possibilidades semânticas em construção/desconstrução. Portanto, também beneficiário do espólio que se oferece em forma de poética.

Minguante

(...)

o último olhar para a casa

espólio dos meus dias

dissolução da minha fé


A forma perseguida por Ferrari em seu novo livro é a da concisão, economia. A comunicação poética caminha a par e passo com a forma metamórfica vivenciada pelo eu lírico. Consegue em belíssimos poemas atingir algumas tomadas precisas:

Lar

nome definitivamente próprio

miríades (extra)ordinárias

linha de chegada

repouso da angústia

em que sonhos coreografam o sono

e a realidade do entorno é musical


No entanto, é a prosa poética que nos conduz ao intricado quebra-cabeças do espólio. Imagens subjetivas juntam-se àquelas do mundo material e tangível, formando peças de um surrealismo sutil, mas com texturas ásperas. Os sentidos devem estar em alerta para uma recepção verdadeiramente responsiva. Aqui visão e tato são convocados à fruição do poema.


Arrima

à primeira vista uma flor

desenhada com tinta fosca

sob verniz brilhante


embaixo, tinta branca

comum, genérica

qualquer


por baixo massa

disfarce das imperfeições

recheio das rachaduras

intenção de homogeneização


embaixo cimento áspero

desagradável ao toque

bruto, atirado, falho


sob ele os tijolos

que formam esta estrutura

e a sustentam


debaixo, nada. Nada.


a história desta parede

é também a minha


Os títulos dos poemas se revezam entre objetividades e subjetividades, sempre intercambiáveis no inventário de bens materiais e imaterias: tapume, posse, arrima, iluminação, ausculta, intrusos, pontas de lança, sal, futuro, semântica, reclusão, tormenta, inflexão, inundação, limit etc .

São imagens que refratam ganhos e perdas, despojamentos das cotas de danos, que tornam o cotidiano insuportável, marcado sucessivamente pelo dever: obedecer, tolerar uma rotina esmagadora das individualidades. Mas todas as imagens estão impregnadas pelo sentimento amoroso, como uma viscosidade que marca os objetos. A marca indelével nos poemas de Ferrari é ambivalência do amor.


Reclusão

as coisas que não vemos

espiam-nos

manifestam-se

nas meias palavras

na densidade do ambiente

nas manchas de umidade

que permanecem

em lugares aprisionados


olhar a coisa até que saibamos

dos sentidos implicados

e nos espantamos com a existência

desse ar viciado que traz tanto

a maçaneta gasta

o prego torto desde a origem

a poltrona preferida

o único garfo com o dente torto


quando é possível perceber o todo

já não há lugar aonde ir

esta bagagem imensa

não pode ser movida

e é com ela que se pode contar

qualquer movimento para fora

será solidão

exigência


Tudo é tocado pelo sentimento amoroso que transbordas por todos os lugares e objetos. Tudo que foi tocado pelo sentimento é o verdadeiro espólio, tudo que foi saturado e transformado pelo amor é a grande imagem do espólio. É do espólio amoroso que o eu lírico quer se desfazer. É preciso buscar um lugar onde o amor próprio venha em primeiro plano, sem culpas ou responsabilidades com o outro. É preciso se ver inteira no formado de um espelho, talhado pela própria mão da artesã de si mesma.

Gelosia

não pôde mais abrir aquela janela

estava em risco, disseram

sustentada por encaixar-se no vão, apenas

passava alguma luz, conseguia dizer dia ou noite

mas por dentro não se sabia do sol ou do vento

sairia dali a qualquer momento, provavelmente

quando houvesse o ímpeto necessário para assumir

: esta janela abandonará a casa

e mais um espaço vazio ficará pendente

o que morre na casa não deixa a casa


A tomada de decisão ao projetar o espólio é transgressora, não deixa dúvidas quanto à necessidade de abraçar o movimento cíclico da vida: é preciso morrer pra viver, gritam os poemas de Flávia Ferrari.


Futuro

Limpei as gavetas o pano em zigue-zague como pano

e você está morta

fui ao supermercado, encontrei nossa vizinha

e você está morta

outra onda de calor, mais uma noite insone

e você está morta

fui ao teatro pela primeira vez este ano

e você está morta

continuo falando demais,

tem sido difícil escutar

e você está morta

você morreu uma vez

mas sua morte ainda acontece

repetidamente


A morte aqui poderia ser interpretada por muitos enfoques e perspectivas, mas aquele que nos parece dialogar mais intimamente com o eu lírico de Ferrari se figurativiza no processo metamórfico das borboletas: ovo, larva (lagarta), casulo (crisálida), borboleta. As borboletas, semelhante ao eu lírico, encena as facetas da morte, nos revelam verdades incontestáveis de que a travessia da metamorfose podem nos conduzir a experiências mágicas, nos voos do livre arbítrio de ser e sentir.

A casa também pode ser um espaço que submete as pessoas a viverem tempo demais na condição de lagarta, caminhar lenta e obedientemente em função daquilo que foi determinado pelos compromissos delegados e aceitos por elas. É preciso coragem para se alçar, se manter no fio tênue que sustém o processo de transformação. Reclusa no casulo, vai tecendo as próprias asas: enquanto se despoja de si mesma, acontece o despojamento daquilo que envelheceu, morreu e precisa partir, para que as asas do futuro se abram sobre a vida.


A morte deve estar em contato com a vida

sem fundir-se a ela,

para que sobreviva

e cumpra seu propósito.


Na forma de lagarta os versos são longos e necessitam de conjunções para expressar a repetitividade da vida arrastada pelos cômodos da casa, frases estiradas pelo chão. Aos poucos, os versos tomam a forma de casulo, que é tecido em fios que se entrelaçam até conseguir o estado de suspensão.

A imagem construída desse processo metamórfico nos surpreende pelos sentimentos ambivalentes de uma mulher que se debate dentro de um casulo às vésperas de experenciar as asas que vibram na expectativa de voos ao desconhecido, nos oferecendo uma imagem alada do movimento dinâmico da existência: tudo que vive, morre; tudo que morre, vive. A configuração da borboleta nos convida à dança alegre e necessária ao voo!

VIVAS PARA A POETA FERRARI!


E(levar-se)

fez-se sombra e meu corpo esfriou rapidamente

fui invadida por uma dor aguda

em um ponto não identificado

a integridade aparente da pele enganava meus sentidos

sentia uma parte de rasgando

e por esta abertura brotaram minhas asas

foram pesadamente se expandindo

e lentamente fui me inclinando em direção ao solo

não as via e não conseguia tocá-las

tinha dificuldade para me virar, olhar o céu e enxergar os outros

percebia seus movimentos quando perdia o equilíbrio

em um súbito momento de coragem subi até um ponto alto

minhas asas se abriram e senti que levitava

na iminência do meu último e único voo

lamentei não ter deixado registrado

: desejei tanto ar que ganhei asas



 
 
 

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