O APRENDIZADO DA BORBOLETA NO PROCESSO METAMÓRFICO DO ESPÓLIO
- Isa Corgosinho
- 23 de abr.
- 5 min de leitura
Por Isa Corgosinho
Em seu terceiro livro, Flávia Ferrari nos agracia com novas imagens da metáfora CASA e seus espaços extensivos. No entanto, a CASA aqui se apresenta na ambivalência da construção e desconstrução. Esse conjunto de bens, que formam o patrimônio do morto a ser partilhado com os herdeiros, é a herança do lirismo existencial da poeta.
A desdobrável metáfora do espólio retorna na casa material e subjetiva. Os materiais concretos dessas edificações sofrem o mesmo processo de decomposição e ruína dos materiais orgânicos, como o corpo. O leitor é pensado como um articulador de sentidos, de possibilidades semânticas em construção/desconstrução. Portanto, também beneficiário do espólio que se oferece em forma de poética.
Minguante
(...)
o último olhar para a casa
espólio dos meus dias
dissolução da minha fé
A forma perseguida por Ferrari em seu novo livro é a da concisão, economia. A comunicação poética caminha a par e passo com a forma metamórfica vivenciada pelo eu lírico. Consegue em belíssimos poemas atingir algumas tomadas precisas:
Lar
nome definitivamente próprio
miríades (extra)ordinárias
linha de chegada
repouso da angústia
em que sonhos coreografam o sono
e a realidade do entorno é musical
No entanto, é a prosa poética que nos conduz ao intricado quebra-cabeças do espólio. Imagens subjetivas juntam-se àquelas do mundo material e tangível, formando peças de um surrealismo sutil, mas com texturas ásperas. Os sentidos devem estar em alerta para uma recepção verdadeiramente responsiva. Aqui visão e tato são convocados à fruição do poema.
Arrima
à primeira vista uma flor
desenhada com tinta fosca
sob verniz brilhante
embaixo, tinta branca
comum, genérica
qualquer
por baixo massa
disfarce das imperfeições
recheio das rachaduras
intenção de homogeneização
embaixo cimento áspero
desagradável ao toque
bruto, atirado, falho
sob ele os tijolos
que formam esta estrutura
e a sustentam
debaixo, nada. Nada.
a história desta parede
é também a minha
Os títulos dos poemas se revezam entre objetividades e subjetividades, sempre intercambiáveis no inventário de bens materiais e imaterias: tapume, posse, arrima, iluminação, ausculta, intrusos, pontas de lança, sal, futuro, semântica, reclusão, tormenta, inflexão, inundação, limit etc .
São imagens que refratam ganhos e perdas, despojamentos das cotas de danos, que tornam o cotidiano insuportável, marcado sucessivamente pelo dever: obedecer, tolerar uma rotina esmagadora das individualidades. Mas todas as imagens estão impregnadas pelo sentimento amoroso, como uma viscosidade que marca os objetos. A marca indelével nos poemas de Ferrari é ambivalência do amor.
Reclusão
as coisas que não vemos
espiam-nos
manifestam-se
nas meias palavras
na densidade do ambiente
nas manchas de umidade
que permanecem
em lugares aprisionados
olhar a coisa até que saibamos
dos sentidos implicados
e nos espantamos com a existência
desse ar viciado que traz tanto
a maçaneta gasta
o prego torto desde a origem
a poltrona preferida
o único garfo com o dente torto
quando é possível perceber o todo
já não há lugar aonde ir
esta bagagem imensa
não pode ser movida
e é com ela que se pode contar
qualquer movimento para fora
será solidão
exigência
Tudo é tocado pelo sentimento amoroso que transbordas por todos os lugares e objetos. Tudo que foi tocado pelo sentimento é o verdadeiro espólio, tudo que foi saturado e transformado pelo amor é a grande imagem do espólio. É do espólio amoroso que o eu lírico quer se desfazer. É preciso buscar um lugar onde o amor próprio venha em primeiro plano, sem culpas ou responsabilidades com o outro. É preciso se ver inteira no formado de um espelho, talhado pela própria mão da artesã de si mesma.
Gelosia
não pôde mais abrir aquela janela
estava em risco, disseram
sustentada por encaixar-se no vão, apenas
passava alguma luz, conseguia dizer dia ou noite
mas por dentro não se sabia do sol ou do vento
sairia dali a qualquer momento, provavelmente
quando houvesse o ímpeto necessário para assumir
: esta janela abandonará a casa
e mais um espaço vazio ficará pendente
o que morre na casa não deixa a casa
A tomada de decisão ao projetar o espólio é transgressora, não deixa dúvidas quanto à necessidade de abraçar o movimento cíclico da vida: é preciso morrer pra viver, gritam os poemas de Flávia Ferrari.
Futuro
Limpei as gavetas o pano em zigue-zague como pano
e você está morta
fui ao supermercado, encontrei nossa vizinha
e você está morta
outra onda de calor, mais uma noite insone
e você está morta
fui ao teatro pela primeira vez este ano
e você está morta
continuo falando demais,
tem sido difícil escutar
e você está morta
você morreu uma vez
mas sua morte ainda acontece
repetidamente
A morte aqui poderia ser interpretada por muitos enfoques e perspectivas, mas aquele que nos parece dialogar mais intimamente com o eu lírico de Ferrari se figurativiza no processo metamórfico das borboletas: ovo, larva (lagarta), casulo (crisálida), borboleta. As borboletas, semelhante ao eu lírico, encena as facetas da morte, nos revelam verdades incontestáveis de que a travessia da metamorfose podem nos conduzir a experiências mágicas, nos voos do livre arbítrio de ser e sentir.
A casa também pode ser um espaço que submete as pessoas a viverem tempo demais na condição de lagarta, caminhar lenta e obedientemente em função daquilo que foi determinado pelos compromissos delegados e aceitos por elas. É preciso coragem para se alçar, se manter no fio tênue que sustém o processo de transformação. Reclusa no casulo, vai tecendo as próprias asas: enquanto se despoja de si mesma, acontece o despojamento daquilo que envelheceu, morreu e precisa partir, para que as asas do futuro se abram sobre a vida.
A morte deve estar em contato com a vida
sem fundir-se a ela,
para que sobreviva
e cumpra seu propósito.
Na forma de lagarta os versos são longos e necessitam de conjunções para expressar a repetitividade da vida arrastada pelos cômodos da casa, frases estiradas pelo chão. Aos poucos, os versos tomam a forma de casulo, que é tecido em fios que se entrelaçam até conseguir o estado de suspensão.
A imagem construída desse processo metamórfico nos surpreende pelos sentimentos ambivalentes de uma mulher que se debate dentro de um casulo às vésperas de experenciar as asas que vibram na expectativa de voos ao desconhecido, nos oferecendo uma imagem alada do movimento dinâmico da existência: tudo que vive, morre; tudo que morre, vive. A configuração da borboleta nos convida à dança alegre e necessária ao voo!
VIVAS PARA A POETA FERRARI!
E(levar-se)
fez-se sombra e meu corpo esfriou rapidamente
fui invadida por uma dor aguda
em um ponto não identificado
a integridade aparente da pele enganava meus sentidos
sentia uma parte de rasgando
e por esta abertura brotaram minhas asas
foram pesadamente se expandindo
e lentamente fui me inclinando em direção ao solo
não as via e não conseguia tocá-las
tinha dificuldade para me virar, olhar o céu e enxergar os outros
percebia seus movimentos quando perdia o equilíbrio
em um súbito momento de coragem subi até um ponto alto
minhas asas se abriram e senti que levitava
na iminência do meu último e único voo
lamentei não ter deixado registrado
: desejei tanto ar que ganhei asas
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