Por Isa Corgosinho1
A poesia de Eugênia Uniflora, pseudônimo de Jéssica Iancoski, é provocativa desde o título. Lembra-nos do discurso e das imagens do Manifesto Pau Brasil, de Oswald de Andrade (com as reconhecidas diferenciações do projeto estético e antropológico do imprescindível modernista). Os pontos de contato são marcados pela síntese dos versos, que exploram na folha em branco as tomadas cinematográficas cubistas da natureza X civilização, mas também pela base irônica que desconstrói e denuncia os processos da aculturação dos povos originários.
Seus poemas se nutrem da inovadora fonte do concretismo e sua posição vanguardista na exploração verbivocovisual do poema, mirando, certeiros, o modo de exploração nas colônias latinas. Eugênia Uniflora propõe, como imagem unificadora e restauradora da natureza usurpada, não o Pau Brasil, mas a estupenda xereca matriarcal latina.
No prelúdio, a poeta elenca os quereres do vasto corpo: o canto é acompanhado da dança, do desejo de alforriar a língua refém do silenciamento histórico das caatingas, matas, cerrados. Os versos se unem em justaposição de sentidos na irmandade uterina da fauna e da flora.
canto porque meu corpo
explode um poema de amor
danço porque minha boca
mantém A LÍNGUA ESQUECIDA refém
O POEMA quer ecoar pelas vias da terra
& se perder pelas estradas de barro
das caatingas
das matas e
dos cerrados
(...)
O POEMA quer alforriar PINDORAMA
e se tornar escritor em língua nativa
(...)
O conteúdo acena para a geocrítica, sobretudo, para um aspecto importante que a caracteriza: a transgressividade _ que afasta resolutamente a concepção secularizante e homogeneizante do espaço, herdada do pensamento positivista e colonialista, à qual opõe a complexidade do espaço no século XXI. Na esteira desses passos, dialoga com a geopoesia enquanto movimento de produção artística e crítica, que incide sobre textos e vozes, personagens e narradores que realizam retratos de brasis liminares. A viagem e o deslocamento, que alimentam esse contar, também incide na própria escrita.
américa latina,
terra sequestrada
e sofrida
teu nome ancestral
é pindorama,
querida
Por outro lado, os poemas de Uniflora fazem coro afinadíssimo com o paradigma da complexidade, desenvolvido pelo sociólogo Edgar Morin. O estudioso francês postula que a chave de toda a compreensão do enfoque sistêmico está no conceito de complexidade e propõe uma compreensão da realidade fundada no entendimento das relações dinâmicas entre as partes que compõe essa realidade e a totalidade resultante da interação das partes.
Uniflora nos remete a essas imagens da complexidade das relações daquilo que conhecemos como América Latina. A geopoesia de Uniflora nos revela que a complexidade é um atributo de toda matéria, portanto, as implicações do processo de aculturação e devastação atingem não apenas as partes, mas o todo interligado do ecossistema referenciado nos poemas. A imagem corporal da América Latina associada à genitália feminina transgride a cartografia colonialista. A terra brota das entranhas, a genitália telúrica é um organismo vivo e pulsante, a parte está no todo e o todo está nas partes.
américa-latina
américa do sul
pindorama estrebuchada
pela ilha de vera cruz
pindorama debulhada
pela trova da terra nova
pindorama estropiada
pelo anseio da terra papagaio
pindorama capengada
pela terra de vera cruz
pindorama estuprada
em nome da santa cruz
O corpo da América Xereca é vítima de todos os tipos de abusos, violações, mas no corpo da poesia ele renasce pelo canto emancipador de Eros. Para entendermos a imagem da xereca, podemos explorar o campo semântico da mulher selvagem, que do ponto de vista arquetípico envolve o ser alfa matrilinear. Pode-se nomeá-la de natureza básica, inata ou natureza típica ou fundamental, na biologia. Tudo que existe em Gaia nasce da xereca primordial da mulher selvagem.
A América Xereca, que acolhe o mundo da natureza em seus ciclos de vida-morte-vida, confronta o processo civilizatório predador associado aos sistemas patriarcais. A mulher selvagem Uniflora desdobra-se em ideias, sentimentos, impulsos e desejos. Ela é quem se enfurece diante das injustiças, é a que gira numa roda enorme, é a criadora dos ciclos.
XV.
américa-pindorama
algo em nós
segreda as cantigas
e os vulcões
da primeira era
o chão
alçando
o céu
o pé
na relva
ao léu
algo em nós
segreda os sons
da primeira reza
as pedras
batucando
na terra
o fogo
sussurrando
o mistério
enterrado
na tumba
dos nossos
antepassados
A mulher selvagem de Uniflora arrisca-se na exploração da linguagem poética. Seu canto de alforria ecoa nas matas, nos rios, embrenhando-se pelas caatingas, cerrados; vive entre as pernas das mulheres, nas xerecas inscritas nas montanhas tão altas como sua solidão, exultante de alegria e vigorosa em processos de recriação da linguagem do primitivo, da elementaridade. Nada tem a ver com o falso neoindianismo de alguns poetas.
É interessante a retomada intertextual da travesti da composição de Chico Buarque. Geni é aquela que é ultrajada, achincalhada pelos habitantes de seu país, mas que permanece resiliente em sua missão de salvar o mundo da pulsão de morte. A travesti confronta os senhores da guerra com seu corpo plural. A pluralidade de uma América Latina matriarcal:
IV.
América-xereca.
mulher latina
terra pindérica
que tudo dá
geni ancestral
geni continental
teu corpo usufruído
por arquitetos omissos
eles te enganaram
geni
verte tua força
teu mantra
teu magma
Jorra teu sangue
:tuas águas
contra as torres altas
fere os sonhos titãs
e recupera tuas florestas
cobertas de asfalto
Eugênia Uniflora, em consonância com a causa em defesa dos recursos patrimoniais da América Latina, opta por uma linguagem enraizada no húmus primitivo, inspirando-se em geometrias elementares na construção de imagens que ressaltam o processo de invasão dos colonizadores, que persiste sôfrego por lucros no agronegócio, nos garimpos, nos latifúndios.
O canto manifesto uterino ressoa para além da audição da fauna e da flora, repercute, sobretudo, nos gabinetes, nos plenários, nas metrópoles asfixiadas pelos dióxidos de carbono, metano e óxido nitroso. Uniflora manifesta-se no canto em homenagem a Eros que ribomba telúrico e transgressor contra a pulsão de morte do capital.
quer superar a DOR & ser sim
ao fim um poema de amor
Referências bibliográficas
IANCÓSKI, Jéssica. América Xereca. Curitiba: Eu-i,2023.
LAUREL, Maria Hermínia. Nota de abertura. In; WESTPHAL, Bertrand. A geocrítica: real, ficção, espaço. Tradução de Maria Hermínia Laurel. Porto: Edições Afrontamento, 2017, p. 7-73.
MORIN, E. Complexidade e a ética da solidariedade. In: G. Castro, E. A. Carvalho & M. C. Almeida (Orgs.). Ensaios de Complexidade. 4ª ed.. Porto Alegre: Meridional/Sulina, 2006, p.11-20.
SILVA JUNIOR, Augusto da. Geopoesia da boa morte pelas ruas coralinas da tanografia. Literatura e Autoritarismo. Santa Maria, n. 26, p.119-136, 2022.
1 ISABEL CRISTINA CORGOSINHO. Natural Brasília/DF, Professora doutora, aposentada, poeta, cronista, contista, ensaísta. Livros: Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Panópticos & Girassós (Urutau, 2024). Integrante dos coletivos Mulherio das Letras PB/DF, Projeto Enluaradas, participante do blog feminarioconexoes, Jornal O Banquete. Coletânea NÓS: autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023);Coletânea NORDESTE: poesia selecionada, conto destaque (SELO OFF FLIP, 2023); PRÊMIO OFF FLIP 2024: conto destaque; PRÊMIO OFF FLIP 2024: poesia destaque. Membro Comissão Seleção prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.
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