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“Paixão simples”, de Annie Ernaux

Iniciei a leitura deste livro sem saber o que pensar. Não quis antecipar nada. Já havia lido um livro de Annie Ernaux no qual ela fala de sua origem social, de seus pais comerciantes, e de sua vergonha quando ela entendeu que sua formação, bem mais intelectual, iria distanciá-la de seus pais e de sua herança familiar. Era um livro mais sociológico, e eu o li em francês, quando morava na França.


Então, iniciei a leitura deste livro “Paixão Simples” sem pensar no primeiro livro que havia lido. Li a orelha e já me veio uma irritação. Falar de uma paixão amorosa desta maneira? A primeira resistência.


Uma vez que comecei a ler o livro, não consegui parar a leitura. Era um misto de raiva, mas também de indignação e de interesse sobre como aquilo tudo começaria. Em resumo, trata-se da história de uma mulher, narrada por uma mulher, acerca de sua paixão por um homem casado, de nome A., originário de um país do Leste europeu, que viveu em Paris. De ponto de vista da narradora, a história arrebatou completamente o ser da narradora, colocando-a à disposição deste homem, muito misterioso, que vinha vê-la quando lhe convinha, no momento que lhe convinha, e na hora que lhe convinha. E, nesse intervalo, a narradora, contava os minutos, as horas enquanto aguardava a chamada dele. Nestes momentos, a narradora contava sua vida de espera, mas, aos poucos, e ao contrário do que inicialmente vi, a narradora preenchia sua vida com uma espera completamente construída por ela mesma, numa vitalidade de seu ser que aguarda o retorno do ser amado, e que, certa maneira, decida viver esta paixão. A partir do momento em que entendi que viver a paixão havia sido uma decisão dela, sem aparente intromissão de A., passei a ver a narradora com outros olhos. E, no decorrer do que ela contava sobre a sua espera, sobre seus dias, sobre as compras que fazia para “agradá-lo”, entendi que era uma escolha da própria narradora.


Mas o ponto de virada ocorreu na página 4, quando a narradora diz:”Comecei a escrever “Desde setembro do ano passado”, não fiz outra coisa além de esperar por um homem”, etc. mais ou menos dois meses depois da partida de A., não sei mais qual dia foi. Se, por um lado, consigo me lembrar exatamente de tudo o que está associado ao meu relacionamento com A., das agitações de outubro na Argélia, do calor e do céu aberto de 14 de julho de 19890, até de detalhes fúteis, como a compra de um mixer em junho, na véspera de um encontro, por outro lado, é impossível relacionar a escrita de uma página específica a uma chuva torrencial, a um dos acontecimentos que ocorreram no mundo há cinco meses, à queda do Muro de Berlim e à execução dos Ceausescu. O tempo da escrita não tem nada a ver com o tempo da paixão.


A partir daí, entendi o projeto literário de Annie Ernaux, que ela expressou neste livro. Não se trata de apenas viver e de narrar uma história de amor, uma paixão arrebatadora, mas sim de se experimentar e de experienciar o que há de limite humano nessa relação. Por outro lado, de maneira surpreendente para o leitor, mas não para o escritor, o fato de trazer a escrita para “le devant de la scène”, para o palco significa que você confirma o que no fundo, estava dito nas entrelinhas da história – a história é um artefato, é um meio para narrar uma experiência de vida e de reavaliá-la por meio da escrita, que se torna, de fato, o personagem principal.


A partir da página 47 até o final, tudo se encaixou, e até mesmo o retorno de A. na vida da narradora por algumas horas, não altera o que a escrita conseguiu provocar e avaliar, nem a vivência que ela viveu. Aquele homem descrito no início não existe mais, e a volta dele serve de ancoradouro para que a narradora, confirme, que, no fundo, essa paixão foi mais um experimento pessoal que ela decidiu viver, e que ela narra através da escrita. E, o mais importante, que somos mais normais do que pensamos ser, e que para compreendermos isso, precisamos viver diferentes experiências que aumentam nossa aderência ao mundo.


Devorei o livro. Sentei num café e li tudo até o final. Aos poucos acalmei-me, e esta leitura confirmou o poder da literatura que nos faz reviver os fatos sob outro prisma, e no final, o que parece ser realidade é apenas mais um aspecto da ficção que se vive, como escreve a narradora na página 60:


“Perguntar se ele “mereceu” ou não isso tudo não faz nenhum sentido. E constatar que essa história começa a ser para mim tão estranha como se tivesse acontecido na vida de outra mulher não altera em nada o fato de que, graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado.


Passei a medir o tempo de outra forma, com todo meu corpo.


Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo: desejos sublimes ou mortais, falta de dignidade, crendices e condutas que eu julgava insensatas nos outros uma vez que eu própria não as havia experimentado. Sem saber, ele estreitou minha conexão com o mundo.”

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