No verão desta coluna, quero partilhar um acontecimento que ilustra o desgaste ao qual me referi na edição anterior, na primavera desta coluna, um desgaste causado pela necessidade de explicar o óbvio sucessivas vezes, mesmo quando em ambientes acadêmicos aparentemente abertos ao diálogo.
Não é novidade que intelectuais de Humanas recorrem à informalidade, pois a precarização docente não garante nossa estabilidade financeira. Eu sou uma dessas pessoas que acumula experiências que, ao longo dos anos, formam parte importante da minha atuação profissional – e é partir deste lugar um tanto ao centro e um tanto à margem que eu me enuncio. Atuar em processos seletivos revisando redações é uma dessas funções, por isso recentemente participei de uma formação que se propunha a ser um balanço sobre erros e acertos de uma correção já realizada. Naquela ocasião, seriam analisados textos produzidos por candidatos e seriam discutidas correções destoantes com o objetivo de alinhar critérios avaliativos. A proposta de escrita analisava o apagamento das mulheres na história e o direito à memória. Junto comigo, 80 professoras – especialistas, mestras e doutoras – participavam desta atividade, pois este é um perfil de pessoas formadas em Letras em trabalhos temporários: majoritariamente feminino. Separadas em salas, ouvíamos os professores titulares da universidade conduzirem a formação enquanto nós, avaliadoras, éramos simultaneamente tratadas como alunas e colegas; era uma troca entre pares, mas com uma clara hierarquia que explicitava uma marcada diferença de gênero.
Um dos textos analisados chamou minha atenção e, por isso, na sala em que eu estava, me pronunciei: tratava-se de uma redação que afirmava que as mulheres, assim como os animais, não mereciam ser assassinadas nem escravizadas. Incomodada, afirmei que o texto fazia uma comparação ofensiva, além de claramente ferir direitos fundamentais e utilizar de modo problemático o verbo “merecer”; com cordialidade, o professor titular respondeu que entendia meu “desconforto”, mas que o edital da prova não pressupunha cláusulas contra situações em que candidatos ferissem direitos humanos, por isso não havia nada que desabonasse sua avaliação. Minha questão foi contornada por uma resposta burocrática e o texto foi considerado a partir de outros critérios.
Paralela à minha pergunta, em outra sala de aula, uma colega e amiga próxima fazia uma pergunta semelhante, mas isso nós só ficamos sabendo depois, quando rachamos uma corrida para irmos embora. A questão levantada dizia respeito a um texto que questionava, desde a premissa, o apagamento das mulheres na história, classificando-o como “suposto”, portanto passível de interpretação e que, por isso, o direito à memória não seria algo a ser restituído ou questionado. A colega solicitava ao professor titular, como representante do saber institucionalizado, a orientação de uma conduta de como proceder frente a uma postura negacionista. Como resposta, o professor titular explicou que não havia nada de proibitivo na lógica aplicada e que, apesar de ser controversa, não era passível de ser eliminada do processo avaliativo. Minha colega pediu novamente a palavra e insistiu afirmando que, caso o tema se tratasse de holocausto na Segunda Guerra ou de racismo no Brasil contemporâneo, uma resposta como aquela seria inadmissível. Diferente de como me responderam na sala ao lado, o professor titular, que pertence à comunidade LGBTQIAPN+, pediu que ela se calasse pois o estava interrompendo e desferiu palavras como “radical”, “extremista” e “raivosa” à colega que, de professora doutora, passou a ser tratada como uma colegial insubordinada.
Ao sair, enquanto dividíamos um uber e trocávamos impressões sobre aqueles episódios, lembrei-me de um artigo de Rosana Pinheiro-Machado, publicado na Revista Carta Capital em 2016, que me marcou muitíssimo, intitulado “Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica”. Para os professores titulares que responderam às nossas perguntas, tratava-se de uma discussão retórica no campo das ideias; para cada uma de nós, tratava-se de rememorar uma prática de silenciamento que conhecíamos muito bem. Irônico era o fato de que o assunto fosse justamente o apagamento de mulheres. Considero que a faca de dois gumes que é propor a reflexão de um assunto que demanda a consciência de uma necessária reparação histórica deveria vir acompanhada de um posicionamento capaz de demonstrar as balizas daquilo que uma instituição considera eticamente aceitável para o seu corpo docente e discente – mas, de certa forma, será que isso já não estava sendo dito nas respostas dadas pelos professores titulares que nos responderam?
Explicar o óbvio cansa, mas não se trata apenas disso: trata-se da certeza de que enquanto as premissas do pensamento acadêmico não forem confrontadas, os discursos oficiais continuarão a servir – direta e indiretamente – como estruturas de defesa que acabam por salvaguardar os mesmos discursos misóginos que, ao menos em teoria, se busca combater, afinal, ainda não há cláusulas que exijam o enfrentamento de “desconfortos”. Saímos de lá constatando, novamente, a complacência elástica da misoginia institucionalizada – naquela circunstância, quase que literalmente – no meio universitário. São poucas vezes no ano em que tenho este impulso, mas saí de lá querendo comprar cigarros.
REFERÊNCIA
Rosana Pinheiro-Machado. Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica. Revista Carta Capital. 2016. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/precisamos-falar-sobre-a-vaidade-na-vida-academica/amp/
Excelente texto, que nos provoca a sermos cada vez mais presentes, atuantes e inconformadas diante de situações em que somos consideradas inferiores aos homens e até mesmo apagadas da história. Por isso, prezada autora, continue escrevendo ótimos textos, como esse. Parabéns!
Que texto necessário, infelizmente... Ainda que não estejamos literalmente lá, somos capazes de vivenciar essa experiência, exatamente porque nos atravessa de inúmeras formas, em tantos outros cenários.